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domingo, 4 de janeiro de 2015

Um conto de Ano Novo

                                                                UM CONTO DE ANO NOVO

Sabe-se lá porque, mas todos dizem e confirmam que quem conta um conto aumenta um ponto.
Nesse conto, nada, ou talvez tudo, adquire um quê de lente de aumento, de inquietude, de desesperança e talvez a esperança por algo mais. Porque é Ano Novo.

Primeiro Domingo do ano. A senhora acordou com uma vontade diferente de se levantar e olhar pela janela, ver o que havia na rua, se os carros continuavam no ritmo do dia anterior, ou seja, quase nulo. Verificando, quase com um sorriso, uma afirmação das suas suspeitas, ela caminhou silenciosamente pelo quarto, quase tão silenciosamente quanto fora ao abrir uma pequena fresta na janela, evitando a todo custo acordar o senhor deitado em sua cama, seu marido, profundamente adormecido e roncando sonoramente.  
Ainda sonolenta – como todo ano, demorava a se habituar ao malfadado horário de verão, seu relógio biológico, sempre um tanto adiantado, nesta época teimava em lhe dizer o horário errado – a senhora caminhou até o banheiro, lavou o rosto, confirmou a presença das duas bolsas sob os olhos: “Louis Vuitton que me perdoe, mas nem essa marca estampada com logotipo e tudo me faria desejar essas coisas hediondas como lembrete do quanto custa caro o passar do tempo...”. Ela se considerava uma senhora, sim... Era casada, estava bem perto de completar meio século, oras, e isso era algo para se respeitar!
A senhora suspirou ao secar o rosto, e pegou o velho vestido branco da noite da virada, ainda dependurado no registro de água, envelhecido e começando a enferrujar. Vestiu a peça, calçou o par de tênis de lona baixos, esquecido perto do box durante a semana, rezando para não ter que encarar chuva grande durante algumas horas ao menos, já que os danados dos calçados prestes a virar antiguidade cismavam em fazer água como uma canoa furada quando chovia. Ela prendeu os cabelos não muito bem cortados em uma tentativa de rabo de cavalo, sem muito êxito; a antiga juba comprida era agora a sombra loura e curta do que já havia sido alvo de inveja e até um pouco de orgulho. Um suspiro, e o escovar de dentes aconteceu num autômato, os mesmos 4 minutos de todas as manhãs.
Uma outra olhada no espelho do armário sobre a pia, respingado de água, enxaguante bucal talvez gotículas minúsculas de perfume... “Por que não, oras?” A mulher abriu o armarinho, guardou a escova de dentes, pegou um tubo e um frasco. Do tubo, retirou apenas uma pequena quantidade de protetor solar um ou dois tons mais claro que o da sua pele, e espalhou cuidadosamente pelo rosto, cobrindo os pequenos vasos que já se faziam notar há alguns anos. O rosto rosado adquiriu uma tonalidade mais branca, e as sardas como que se esforçavam para se fazer notar, sem muito sucesso. Em seguida, ela aplicou com o pequeno pincel um pouco do conteúdo rosado do batom contido no frasquinho, usado normalmente em ocasiões mais especiais, em que ela preferia sentir-se melhor consigo mesma. Não se importava com o que vissem ou pensassem, apenas gostava da sensação de se sentir bem. Por isso mesmo não dispensou seu perfume preferido, aquele que possuía há anos, caro, francês, e que havia se tornado sua marca registrada, comprado por ela pela primeira vez, e depois recebido de presente do marido como um gesto de amor em tempos de governos responsáveis e economia estável... Agora, economizado até a última gota.
Ajeitando o vestido que lhe grudava nos quadris, que haviam adquirido um bom volume nos últimos anos, puxou mais para baixo o vestido, quase até o meio das panturrilhas, saiu do banheiro ainda em silêncio, verificou se o sono do marido continuava pesado, e se dirigiu até a porta, quieta feito um chumaço de algodão que cai no assoalho empoeirado. Pegou a bolsa sobre uma cadeira na sala, escreveu um bilhete breve num bloquinho sobre a mesa de jantar para o marido, dizendo que voltaria logo, e saiu.
Quando chegou ao portão do prédio, não olhou para trás.  Apenas retirou de um compartimento na bolsa um cartão de transporte, e se encaminhou para o ponto de ônibus, reparando na quantidade quase nula de pessoas andando pela rua. O ônibus não tardou a chegar. Ela fez sinal, subiu no veículo quase vazio, e praticamente deslizou para um assento solitário e alto nos fundos da gigantesca sanfona articulada após passar o cartão pelo cobrador e ultrapassar a catraca. Ela achava impressionante como os motoristas conseguiam conduzir mal um meio de transporte público, mesmo nos dias em que o tráfego era calmo, quase nulo. A mulher sentou-se, passou uma mão pelos cabelos um tanto bagunçados pelo vento vindo da janela, e recostou-se, respirando fundo e relaxando, decidida a apreciar o que poderia bem ser um passeio de Ano Novo. Seu ponto ainda estava a muitos quilômetros de distância.
Ela pensou na vida enquanto o ônibus percorria o trajeto, parando em poucos pontos pela falta de passageiros. Lembrou de certos dias do ano que acabara de ficar para trás, e de dias deixados num passado ainda mais distante, quando tinha mais vigor, mais viço, mais vida talvez. Imaginou alternativas para escolhas feitas, fez um resumo, mentalmente, dos pontos em que acertara, questionou o que tinha feito, se havia ou não errado, e se perguntou se realmente poderia haver outras alternativas, ou se talvez, como diziam por aí, estivesse tudo escrito, como num livro, pessoal e intransferível, ou num script pré-elaborado ainda antes de nascermos. Em silêncio, indagou, olhando para o teto do ônibus, como se houvesse alguém ali para responder, o que é que algumas pessoas haviam feito antes de chegar aqui nessa Terra de ninguém para ter benefícios a mais do que outros meros mortais. Divagando, notou o ônibus se aproximar da Avenida que nunca dorme, e havia restos de festa, ecos de risos em meio ao silêncio, havia ainda o cheiro das luzes que iluminam o céu, efêmeras, e desaparecem como se nunca houvesse existido o barulho de explosões que atordoam os anciãos e traumatizam cães pela cidade afora... Ela se ergueu do assento, pressionou o botão para a próxima parada, esperou alguns segundos para chegar ao ponto, e finalmente desceu.
O relógio digital no canteiro central mostrava 9 horas e 12 minutos. Até as 9 e 22, ela caminhou até a entrada do parque, já ouvindo o barulho que pequenos animais e aves faziam pelas árvores e trilhas. Caminhando mais um pouco, sozinha, notando que não havia viva alma nos arredores, ela procurou por um banco, e sentou-se, gemendo  com a dor nas costas, o sempre presente nervo ciático a reclamar não apenas pela caminhada, mas pelo peso ganho nos últimos anos. A pequena bolsa aninhou-se sobre suas coxas como um gato a ronronar no colo do dono. Ela recostou-se, ergueu os braços e espreguiçou-se, fechando os olhos por um momento, sentindo o sol fraco a se espalhar pelo seu rosto por entre galhos de uma árvore frondosa e alta mais à frente. Alguns pássaros pareceram se assustar, apressando-se numa revoada desordenada de repente. Olhando ao redor, os olhos cansados espremidos para enxergar mais longe, ela notou o rapaz que se aproximava. Endireitou as costas e levou uma mão à bolsa num reflexo naturalmente paulistano, entre curiosa e tensa com a postura e o caminhar do rapaz. Ele caminhava como se seu gingado fosse atributo a que qualquer observador devesse reverenciar. Ele calçava sandálias de dedo, ela notou conforme o estranho se aproximava, daquelas de borracha, sabe-se lá se soltavam as tiras ou não nos dias de hoje. A calça jeans parecia surrada e pedia desesperadamente por um cinto ou algo que lhe segurasse ao redor da cintura do rapaz. A camiseta que anunciava que ele era o condutor do Bonde do Tigrão já vira dias melhores, e a cada par de passos o sujeito tragava um cigarro torto. Ele se aproximou, uma mão no bolso de trás da calça. Ela piscou os olhos uma, duas vezes, e esperou a abordagem que certamente aconteceria, rezando para não haver confusão naquele 1º de Janeiro.
Ao invés de falar, o rapaz sentou-se, cruzando uma perna por cima da outra, esticando os braços pelo encosto do banco comprido, e olhou para a senhora.
- Madrugou, madame?  - Sem rodeios. O rapaz pôs-se a encara-la fixamente, para em seguida percorrer os olhos por toda sua figura, notando roupas, sapatos, acessórios, e parando por alguns segundos nos brincos de pérola que ela usava.
- Não senhor, não madruguei. E não sou madame, você se enganou. – Pensou em dizer com o bom e velho palavreado quem poderia ser a tal madame a que ele se referia, mas continuou em silêncio, deixando sua postura aparentar uma segurança que ela já havia possuído tempos atrás. Não naquele dia, nem naquele tempo.  Olhou para a copa de uma árvore, sem deixar de notar com o canto do olho que o rapaz não deixava de encara-la por um instante sequer.
- Tá certo então, Dona. Tem aí uma grana pra me emprestar?
Quase engasgada, ela franziu o cenho, voltando a fita-lo, como se visse um bode de quatro cabeças bem à sua frente.  – Como? – O coração acelerou o ritmo, e ela puxou o ar fresco do parque pelas narinas, soltando-o em seguida. O cheiro era de cigarro, algo como queijo estragado e problemas.
- Tô perguntando se a Dona aí não tem uma grana pra me emprestar.
- Não. Eu não tenho. – O tom saiu seco, ríspido. A postura mudou, a guarda havia se erguido por completo, e dali em diante, nada era previsível. Talvez um assalto, talvez outra coisa que ela se recusava a sequer imaginar. “Quem mandou? Sair de casa pra que?? Por que esse maldito parque, mulher, por que?”
- Tem pobrema não tia. Pode conferir aí na bolsa que eu tenho tempo, eu espero. – Ele falava devagar, e parecia estar se divertindo.
- Vou te dizer uma coisa, menino – Ela respirou fundo, e soltou o ar novamente, encarando-o – Primeiro, eu não sou sua tia, não. Segundo, eu já percebi que você reparou bem em mim. Deve ter visto que dinheiro é uma coisa que eu não tenho. E se tivesse, seria muito imbecil de trazer a um parque, num dia como hoje e num horário desses.
O rapaz pareceu surpreso. – A Dona aí fala pra cacete hein?! Negócio é o seguinte: a Dona me dá o que tiver de valor aí, e eu te deixo em paz, sacou? – Falando, ele pegou-a pelo cotovelo e forçou a senhora a se levantar, quase arrastando-a consigo para um local mais isolado, perto de um conjunto mais denso de árvores, aonde o sol quase não penetrava. Ela caminhou a passos rápidos, pensando igualmente rápido. A alguns passos de um eucalipto muito alto, ela parou, fincou os pés no chão, e quase fez o rapaz tropeçar numa raiz, largando seu braço. – Se gritar, já sabe! – Ele puxou um revólver de cano comprido do cós da calça, apontando-o para o rosto da senhora, olhando nervosa e rapidamente em volta, para voltar a encara-la. Não parecia que o sujeito estava sob efeito de drogas, embora o hálito rescendesse levemente a álcool.
- Eu não vou gritar, idiota! – Quando ela percebeu, já tinha falado, e provocado uma reação inesperada do rapaz, que baixou a arma por um momento, pondo a mão na cintura e coçando o queixo. – A Dona madame aí é casca grossa, hein? Por acaso eu xinguei a senhora? – Com os olhos arregalados, ele voltou a apontar a arma. – Esvazia a bolsa no chão Ma-da-me! – Ele fez questão de falar bem baixo, e enfatizou a última palavra, que percebeu que ela não gostava. – Vai porra! Agora!
Ela apenas piscou os olhos, demonstrando uma calma que não sentia nem de longe, e abriu o pequeno objeto, virando-o sobre o chão de terra. – Pronto! Satisfeito, moleque?
Ele pareceu se assustar a princípio com a reação da senhora. Depois pareceu ficar com raiva, e então começou a rir, observando o conteúdo da pequena bolsa espalhado pelo chão: um cartão de transporte, uma pequena escova de cabelos com o cabo quebrado, um lencinho de tecido fino, uma nota de 10, alguns centavos, 3 balas de hortelã, daquelas baratinhas, carteira de identidade, um cartão de visitas do marido, um frasco com álcool gel, e alguns guardanapos de papel dobrados juntinhos num pequeno volume.
- Olha Dona, sabe o que é que eu faço com “suas tranqueira”? – Ele tirou um dos chinelos de dedo, pegou o lencinho com o dedão e o dedo médio do pé e jogou para cima, com uma agilidade surpreendente, pegando-o com a mão que estava livre. Tirou uma faca do bolso de trás da calça e retalhou o lenço facilmente, enquanto ela apenas observava com raiva nos olhos estreitados, os braços cruzados sobre os seios, batendo com a ponta de um dos pés no chão. – Quem manda ser dura? – E o rapaz começou a rir abertamente, mostrando a falta de pelo menos dois dentes no canto superior da boca.
- Meu Deus... – Ela fez que não com a cabeça.
- E agora me passa aí “esses brinco”, que tá com jeito de ser joia.
- HÁ! Como se você fosse saber a diferença! E não passo nada não senhor! Vá trabalhar vagabundo! Maldito indulto! Deus castiga sabia? Sua mãe não te deu educação, não, moleque? Ela não tem vergonha de você??  - O assaltante pareceu ficar paralisado, e ela já não se encontrava mais parada, movia-se em direção a ele, com os olhos ameaçadores, soltando chispas. O tom de voz da senhora era de revolta, e ela parecia não conseguir parar de falar agora que havia começado. – O exemplo vem de cima, né? – Ela apontou para cima e apanhou a bolsa do chão, aproximando-se ainda mais do rapaz, que parecia grudado no chão, tentando calçar o chinelo que havia tirado um minuto antes.
- Não tia, Deus é bom, e Jesus deu bom exemplo! – Agora o moço é que tentava aparentar calma, sem saber se apontava o revólver ou se guardava o objeto.
- Não estou falando de Deus seu mentecapto! – Ela alcançou-o, que, surpreso, deu um passo para trás, mas não conseguiu fugir da mão que lhe agarrou o pulso e torceu até que ele soltasse a arma. Pegando-a do chão rapidamente, ela apontou para o assaltante que naquele momento aparentava ser nada mais do que um menininho que havia sujado as fraldas. – O exemplo vem de cima, lá de quem manda no país, seu merdinha! É assim que se fala, não é? Quando você saiu da cadeia? Fugiu, foi? Ou te deixaram sair por bom comportamento, por ser a bonequinha da turma?? – Ela apontou a arma para o rosto do rapaz e esticou o dedo indicador. – Jogue a faca no chão! – Ele obedeceu sem pestanejar. – E então?
- Como é que a madame sabe da cadeia?
- Eu vi a tatuagem nos seus dedos, cretino! E se agora eu atirar em você, hein? Como é que fica? E madame deve ser aquela parideira da sua mãe, que se estiver viva deve estar morrendo de vergonha e de desgosto nesse minuto! Quantos anos você tem?
- Quatorze, senhora. – As costas do rapaz se arquearam para a frente, formando uma corcunda.
- AH! Agora é senhora, né? Ficou educadinho de repente? Ou será que você tem medo de berros? – Ela sacudiu o revólver, ainda apontado para o nariz do rapaz, que ensaiou um soluço e começou a dar indícios de que iria chorar.
- Tá roubando por que, vagabundo? – Ela acariciou o cabo de metal da faca de chef, imaginando como é que ele conseguira aquela peça...
- Porque eu to sem grana, senhora...
- E não pode trabalhar?
- Eu tava guardado, Dona.
- Por roubo?
- Sim senhora.  – ele hesitou antes de falar.
- O que mais? Fala logo que eu estou começando a perder a paciência!
- Matei meu padrasto, senhora. E tava vendendo droga pra um chegado meu.
- Mas é um verme... Sabe o que eu gostaria de fazer agora? O que fazem os muçulmanos, que cortam as mãos dos ladrões como punição. Mas agora, eu só vou fazer uma coisa... – Ela se aproximou mais do rapaz, que tinha suor a escorrer-lhe pelas têmporas, e já exalava um cheiro horroroso de cebola debaixo dos braços, a camiseta mostrando círculos escuros e malcheirosos na região. A pouco menos do que um passo em frente ao moço, a senhora ergueu o braço bem alto e soltou a faca, que caiu certeiramente sobre o peito do pé do rapaz, que caiu de joelhos, gemendo alto e xingando. Ela então agarrou-o pelos cabelos encaracolados e densos, mandando-o calar-se. Ela apontou a arma e mandou-o ficar de pé após arrancar-lhe a faca do pé, não sem antes finca-la um pouco mais fundo. Ele não conseguia apoiar o pé no chão sem gemer muito, com lágrimas a escorrer-lhe pelo rosto.
- Talvez você consiga um emprego para inválidos quando sair da “cana”, não sei se acertei algum nervo... Vagabundo de uma figa! Eu trabalho desde que era adolescente! Tudo o que consegui na vida, e não é quase nada, foi com trabalho, só para ter que entregar o que tenho e o que não tenho para um merdinha como você? O dinheiro ou a vida? É assim? E tenho que ser tão patética a ponto de não ter nada de valor para ser poupada, e ainda tenho que aguentar um ladrãozinho mequetrefe como você rindo da minha situação? – Ela esbofeteou-lhe os dois lados do rosto com as costas da mão, tirando-lhe sangue do canto dos lábios. – E meus brincos ninguém leva, entendeu?? São especiais para mim, quem me deu não pode me dar mais nada nessa vida, e SÃO MEUS! – Ela completou pisando-lhe no pé machucado. – Ajoelha de novo seu moleque! – Ela vislumbrou mentalmente a foto em seu criado-mudo, lembrando da forma como o corpo fora encontrado. Ela... tão amada por tantos... Suspirou, o sangue fervendo-lhe no rosto.
O rapaz caiu de joelhos no chão, chorando copiosamente,
- Você matou quantos além do seu padrasto?
- 8, senhora. Matei 8 pessoas. Perdão! Perdão!
- Não sou eu quem tem que te perdoar. Você tem muito mais a pedir além de perdão. Sabe rezar, imbecil?
- Sei, sim, senhora! Mais ou menos.
- Ave Maria? – Ele assentiu. – Pai Nosso? – Ele sacudiu a cabeça, incerto. – Pode começar.
A senhora deu a volta por trás do rapaz ajoelhado, e esperou que ele começasse, grudando-lhe a faca no pescoço. Ele terminou seu terceiro Pai Nosso, rezou três Ave Marias e pausou. – Faltam cinco de cada. Você está arrependido?
O rapaz hesitou, com medo da pressão da faca no pescoço, e respondeu que sim sem mover um músculo.
– Então termine, ainda hoje! – Ela olhou rapidamente em volta, não sabia há quanto tempo estavam ali, mas provavelmente demoraria um pouco mais para que os festeiros de ressaca aparecessem naquele ponto isolado do parque. Ela agachou, cuidando para não afastar a faca do pescoço do assaltante, e alcançou o lençinho esfarrapado, juntando os trapinhos em uma mão. As orações chegaram ao fim, e o rapaz suspirou, como se estivesse aliviado.
– Muito bem. Sente-se melhor? Como é que você se sente tendo sua vida ameaçada por alguém que não parece oferecer perigo?
- Eu estou arrependido senhora.
- Responda a minha pergunta. Você não está revoltado? Com medo? Assustado? Você revidaria, daria o troco? Pode ser sincero comigo...
- Estou com medo sim, senhora.  Não sei se eu dava o troco, se eu pudesse eu só fugia.
- E voltaria a roubar e a matar?
O rapaz vacilou um pouco, e ela voltou a ficar de frente para ele. Gentilmente, ela tomou-lhe a mão, depositando ali a faca, enquanto apontava o revólver para o chão.
- E agora? Você não está tão em desvantagem...
Os olhos do rapaz pareceram se reacender por um instante, e ele fez menção de se levantar.
- Quem foi que disse que podia? Eu já entendi. – Ela balançou a cabeça negativamente – Você é um covarde, um ladrão, um assassino... E o exemplo vem de cima mesmo... Você é menor, não responde pelos seus crimes à altura, não recebe a punição certa... – Ela apontou o revolver direto para a boca do rapaz trêmulo – Nem quando tem a chance, você se emenda... E assim construímos um país onde vale tudo para estar por cima, ostentar... Talvez seja só a natureza humana, não é? – Encarando-o nos olhos, ela apontou para a mão do rapaz, a que segurava a faca. Ele parecia ouvir alguém falando em outra língua que não conseguia entender. Ela quase teve pena. – Erga a mão, devagar... Isso... Encoste a faca no seu pescoço. – O rapaz fazia como ela mandava, piscando muito e nervosamente. – Mais perto... Mais... Pare aí... Assim. – Ela se deu por satisfeita quando a faca tocou-lhe a artéria carótida, afastou-se alguns centímetros e se posicionou praticamente ao lado do moço. – Quer me pedir perdão? – Ele fez que não com a cabeça, parecendo confuso, e muito ofegante. – Ótimo! – Com um movimento rápido e certeiro, a senhora deu um puxão no antebraço do rapaz, e a faca afiada deslizou profundamente sobre a pele, cortando a carne. O sangue jorrou profusamente, manchando a gola da camiseta, e escorrendo por onde quer que encontrasse passagem. A senhora observou por alguns segundos enquanto o assaltante tentava apertar o pescoço e estancar o sangue, reparando meticulosamente no vestido branco, certificando-se de que não havia algum respingo do sangue do rapaz. Ele jazia deitado a poucos centímetros dos pequenos tênis de lona da senhora, a faca caída perto da mão ensanguentada do rapaz, morto.
Respirando fundo, sentindo algo parecido com alívio, ela recolheu a faca, enfiou a lâmina na terra e puxou-a de volta, tirando a maior parte do sangue do rapaz da superfície de metal. Em seguida, pegou o frasco de álcool gel do chão, e os guardanapos. Ela esfregou a lâmina no ferimento aberto no pescoço do assaltante, e então, cuidadosamente, ela limpou o cabo da faca e, segurando-a com um guardanapo, colocou-a na mão do rapaz. Fez a mesma limpeza meticulosa no revólver, limpando toda a superfície, apagando qualquer possível digital deixada por ela no objeto, e segurando-a entre dois dedos envoltos nos farrapos do lencinho, colocou-a caprichosamente de volta no cós da calça do moço.  Ela endireitou as costas e resolveu pegar um galho de palmeira com folhas secas caído por perto e passar por sobre a terra, apagando qualquer pegada dos seus tênis.  Com muita calma, a senhora saiu daquele cenário hediondo andando devagar, arrastando atrás de si o galho, como se estivesse apenas distraída, ou até se divertindo, olhando para trás de quando em vez, só para ter certeza de que estava tudo em ordem pelo caminho... Havia um sorrisinho quase imperceptível no canto do lábio pintado de um rosa discreto...
Assim que chegou a um piso asfaltado, ela tratou de quebrar o galho em vários pedaços, deixando –os jogados por alguns lugares onde passou... Pessoas já caminhavam pelo parque, algumas com cara de ontem, com seus óculos de sol, levando crianças em carrinhos de bebê, pedalando suas bicicletas... Era apenas um 1º de Janeiro como outro qualquer. Um ano novo começava, mas pouca coisa mudava. Bem, ao menos uma coisa havia, sim. Um malfeitor, um assassino, um bandido a menos para atormentar e matar pessoas de bem.
Ao caminhar para o ponto de ônibus, ela rezou silenciosamente, lembrando da sua avó, morta por um assaltante no dia do seu aniversário de 16 anos. Ela havia lhe dado seus preciosos brincos de pérola, companheiros inseparáveis de uma vida, praticamente. Caminhou quase como em uma procissão, sentindo algo semelhante a um gosto de metal na boca... Seria este o gosto que tinha a vingança?
Ao chegar em casa, a senhora beijou o marido, tomou uma chuveirada, bebeu o café que ele lhe preparara, e resolveu ir dormir. Naquele dia, ela se achou no direito, sentia-se cansada como nunca estivera. Ela tinha quase certeza de que merecia...  Sorriu serenamente antes de adormecer, desejando-se um Feliz Ano Novo, um ano diferente, e de fazer a diferença...


A senhora despertou lentamente. Custou para que finalmente conseguisse abrir os olhos. Ela olhou em volta, esperando encontrar o marido cochilando, como de costume, ao seu lado. Ficou confusa por um instante, piscando algumas vezes. Não tinha certeza de onde estava... A superfície onde estava era dura, nada como seu colchão velho, macio e aconchegante. A claridade era muito grande também... Virando a cabeça, ela notou a terra batida, árvores, grama. Num susto, reconheceu os pés de metal de um banco, e tocou o chão ao seu lado, tentando firmar o corpo e se erguer. Havia um gosto metálico em sua boca... O chão parecia úmido.
Ela conseguiu sentar-se, e endireitou as costas, como sempre fazia. Seu vestido estava sujo de vermelho... Sangue! Seu sangue! Como assim? Outro susto. Tocou o próprio pescoço. E então, levou as mãos à cabeça... às bochechas, aos lábios... suas orelhas! Não podia ser!
Fechou novamente os olhos, e refez seus passos mentalmente, tentando entender o que acontecia. Aquele rapazinho queria assalta-la. Ele a havia levado para aquela parte isolada do parque. Ela não tinha algo de valor para lhe entregar... O menino tinha uma arma, uma faca...Era tão novinho! Ele queria seus brincos! Os brincos de pérola dados a ela pela sua avó, sim... Ela não os entregaria, eram muito importantes para ela...Mas ela havia desarmado o meni... “NÃO!” Ergueu-se facilmente, rápida, ágil como há muito não era. Ela se viu deitada, sangue por todo o peito e estômago, uma bagunça danada, uma cena feia aterrorizante. Seu pescoço estava dilacerado, os lóbulos de suas orelhas haviam sido decepados... “Meus brincos!” Deu-se conta lentamente ... Sentiu um grande vazio, e em seguida raiva, frustração, tristeza...  “Ah, não... Não assim... Meu marido! Ahhh... Meus filhos... Eu só queria dar um passeio de ano novo. Aquele menino, Pai do Céu... Minha vida... Ele levou minha vida! Por que é que eu DEVERIA ter dado o que ele queria, se era ELE que estava errado?? Por que eu não tinha o direito de ter uma lembrança deixada por minha avó tão querida, Senhor? Por que é que ele teve que me tirar a vida, se já iria me levar algo cujo valor maior era o sentimental? Nem eram grandes, os meus brinquinhos... Não valem tanto... Por que eles estão começando tão jovens...? Por que?”
Ela ficou ali parada a observar, lembrando de tudo. Passado o susto, o trauma, ficava fácil até de entender. Havia sido como um sonho. E ela acordara para ver o pesadelo físico deixado por aquele garoto que destruíra uma vida, uma família. Ela sonhara ter feito algo a respeito. Quase sorriu, desolada, desconsolada, refletindo sobre aquela falsa realidade que criara em um sonho, ou seja lá o que fosse, tentando apagar o que acontecera, o trauma de ver uma arma disparada em sua direção.. Lembrou-se da dor, de como o projétil queimara-lhe o peito como ferro em brasa, levando a mão até o local sem perceber. Sentiu novamente o metal cortando-lhe os lóbulos das orelhas, lembrava-se perfeitamente, ainda respirava, mas o rapazinho tinha pressa, e queria seus brincos a qualquer custo. A alguns passos de onde estava sua mão esquerda, já muito pálida, ela viu os pedaços de carne cortada deixados para trás como quinquilharias após um saque violento...  Esboçou um breve sorriso ao notar sua aliança de casamento intacta em seu dedo anelar. “Ele deve ter se distraído, ou estava mesmo com muita pressa...”
Ela esperou por algum tempo, pensativa... Como é que ela poderia ter levado a melhor contra um garoto tão jovem, armado, cheio de maldade e ganância no coração, ávido por algo de valor material que julgara serem os brincos. Aquela criança poderia fazer isso com outras pessoas! Aonde estavam as autoridades, que não trancafiavam um ser já tão violento assim, e tão, mas tão jovem? O que seria quando fosse adulto? A quantos mataria, e sabe-se lá por que? Percorreu com os olhos aquele retrato pintado com sangue e violência, um quadro de um ano novo infeliz para quem lhe amava. “Como eles vão receber a notícia? Nem meu marido sabe onde estou... Ah, rezem por mim... Eu ainda tinha tanto pra fazer!”
Um homem uniformizado foi quem encontrou a senhora, deitada, horas após sua morte. Ela tranquilizou-se um pouco quando ele fez uma oração, pedindo a Deus que lhe desse paz, e em seguida chamou a polícia. A senhora observava, querendo pedir a eles que encontrassem seu marido, seus filhos, e fossem delicados ao dar a notícia. Por mais estranho que parecesse, mesmo tendo a certeza de que não haveria volta, em algum canto do que ela era a partir dali, espírito, uma alma, ela não tinha certeza, havia uma esperança, por pequenina que fosse, de que ela acordaria novamente, viraria para o lado, e sorriria ao ver seu marido a roncar, sonoramente, ao seu lado, como sempre fizera nos últimos 33 anos. Aos poucos a notícia se espalhou pelo parque, pessoas vieram rezar pela alma da senhora, que observava calmamente a tudo em um canto.
Ela deixou o parque quando finalmente pegaram sua identidade. Ela sentiu uma certa ternura quando ouviu o policial, emocionado, pronunciar seu nome... Ele pegou o cartão de visitas encontrado perto da bolsa, e o telefonema para seu marido foi feito: “O senhor é parente de Dona Esperança?” Ela se afastou, não querendo ouvir mais... Então observou enquanto aquela massa pálida de lábios meio rosados, meio azulados, que ainda naquela manhã era seu corpo, foi erguida cuidadosamente, colocada sobre uma maca, coberta com um lençol branquinho, assim como ela gostava, carregada para dentro de um veículo, e transportada, tudo como mandava a lei... Ao menos uma lei, aquela lei, a ajudaria a chegar a um lugar, quem sabe um lar, sem muitos problemas, a salvo de quem pudesse querer lhe fazer algum mal.
Assim começou e terminou o ano novo da senhora, Esperança. Apenas mais uma vítima, apenas mais uma entre tantas, mas sempre “A UMA” para alguém... Quantas Esperanças mais ainda esperam sem saber que seu ano está para terminar assim, e por quanto tempo isso ainda pode acontecer, assim, do nada, por nada? E como essa senhora perguntou, por que?
                                                                               
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