UM
CONTO DE ANO NOVO
Sabe-se lá porque, mas todos dizem e confirmam
que quem conta um conto aumenta um ponto.
Nesse conto, nada, ou talvez tudo, adquire um
quê de lente de aumento, de inquietude, de desesperança e talvez a esperança
por algo mais. Porque é Ano Novo.
Primeiro Domingo do ano. A senhora acordou com uma vontade diferente de
se levantar e olhar pela janela, ver o que havia na rua, se os carros continuavam
no ritmo do dia anterior, ou seja, quase nulo. Verificando, quase com um
sorriso, uma afirmação das suas suspeitas, ela caminhou silenciosamente pelo quarto,
quase tão silenciosamente quanto fora ao abrir uma pequena fresta na janela,
evitando a todo custo acordar o senhor deitado em sua cama, seu marido,
profundamente adormecido e roncando sonoramente.
Ainda sonolenta – como todo ano, demorava a se habituar ao malfadado
horário de verão, seu relógio biológico, sempre um tanto adiantado, nesta época
teimava em lhe dizer o horário errado – a senhora caminhou até o banheiro,
lavou o rosto, confirmou a presença das duas bolsas sob os olhos: “Louis
Vuitton que me perdoe, mas nem essa marca estampada com logotipo e tudo me
faria desejar essas coisas hediondas como lembrete do quanto custa caro o passar
do tempo...”. Ela se considerava uma senhora, sim... Era casada, estava bem
perto de completar meio século, oras, e isso era algo para se respeitar!
A senhora suspirou ao secar o rosto, e pegou o velho vestido branco da
noite da virada, ainda dependurado no registro de água, envelhecido e começando
a enferrujar. Vestiu a peça, calçou o par de tênis de lona baixos, esquecido
perto do box durante a semana, rezando para não ter que encarar chuva grande durante
algumas horas ao menos, já que os danados dos calçados prestes a virar
antiguidade cismavam em fazer água como uma canoa furada quando chovia. Ela
prendeu os cabelos não muito bem cortados em uma tentativa de rabo de cavalo,
sem muito êxito; a antiga juba comprida era agora a sombra loura e curta do que
já havia sido alvo de inveja e até um pouco de orgulho. Um suspiro, e o escovar
de dentes aconteceu num autômato, os mesmos 4 minutos de todas as manhãs.
Uma outra olhada no espelho do armário sobre a pia, respingado de água,
enxaguante bucal talvez gotículas minúsculas de perfume... “Por que não, oras?”
A mulher abriu o armarinho, guardou a escova de dentes, pegou um tubo e um
frasco. Do tubo, retirou apenas uma pequena quantidade de protetor solar um ou
dois tons mais claro que o da sua pele, e espalhou cuidadosamente pelo rosto,
cobrindo os pequenos vasos que já se faziam notar há alguns anos. O rosto
rosado adquiriu uma tonalidade mais branca, e as sardas como que se esforçavam
para se fazer notar, sem muito sucesso. Em seguida, ela aplicou com o pequeno
pincel um pouco do conteúdo rosado do batom contido no frasquinho, usado
normalmente em ocasiões mais especiais, em que ela preferia sentir-se melhor
consigo mesma. Não se importava com o que vissem ou pensassem, apenas gostava
da sensação de se sentir bem. Por isso mesmo não dispensou seu perfume
preferido, aquele que possuía há anos, caro, francês, e que havia se tornado
sua marca registrada, comprado por ela pela primeira vez, e depois recebido de
presente do marido como um gesto de amor em tempos de governos responsáveis e
economia estável... Agora, economizado até a última gota.
Ajeitando o vestido que lhe grudava nos quadris, que haviam adquirido um
bom volume nos últimos anos, puxou mais para baixo o vestido, quase até o meio
das panturrilhas, saiu do banheiro ainda em silêncio, verificou se o sono do
marido continuava pesado, e se dirigiu até a porta, quieta feito um chumaço de
algodão que cai no assoalho empoeirado. Pegou a bolsa sobre uma cadeira na
sala, escreveu um bilhete breve num bloquinho sobre a mesa de jantar para o
marido, dizendo que voltaria logo, e saiu.
Quando chegou ao portão do prédio, não olhou para trás. Apenas retirou de um compartimento na bolsa um
cartão de transporte, e se encaminhou para o ponto de ônibus, reparando na
quantidade quase nula de pessoas andando pela rua. O ônibus não tardou a
chegar. Ela fez sinal, subiu no veículo quase vazio, e praticamente deslizou
para um assento solitário e alto nos fundos da gigantesca sanfona articulada
após passar o cartão pelo cobrador e ultrapassar a catraca. Ela achava
impressionante como os motoristas conseguiam conduzir mal um meio de transporte
público, mesmo nos dias em que o tráfego era calmo, quase nulo. A mulher sentou-se,
passou uma mão pelos cabelos um tanto bagunçados pelo vento vindo da janela, e
recostou-se, respirando fundo e relaxando, decidida a apreciar o que poderia
bem ser um passeio de Ano Novo. Seu ponto ainda estava a muitos quilômetros de
distância.
Ela pensou na vida enquanto o ônibus percorria o trajeto, parando em
poucos pontos pela falta de passageiros. Lembrou de certos dias do ano que
acabara de ficar para trás, e de dias deixados num passado ainda mais distante,
quando tinha mais vigor, mais viço, mais vida talvez. Imaginou alternativas para
escolhas feitas, fez um resumo, mentalmente, dos pontos em que acertara,
questionou o que tinha feito, se havia ou não errado, e se perguntou se
realmente poderia haver outras alternativas, ou se talvez, como diziam por aí,
estivesse tudo escrito, como num livro, pessoal e intransferível, ou num script
pré-elaborado ainda antes de nascermos. Em silêncio, indagou, olhando para o teto
do ônibus, como se houvesse alguém ali para responder, o que é que algumas
pessoas haviam feito antes de chegar aqui nessa Terra de ninguém para ter
benefícios a mais do que outros meros mortais. Divagando, notou o ônibus se
aproximar da Avenida que nunca dorme, e havia restos de festa, ecos de risos em
meio ao silêncio, havia ainda o cheiro das luzes que iluminam o céu, efêmeras,
e desaparecem como se nunca houvesse existido o barulho de explosões que
atordoam os anciãos e traumatizam cães pela cidade afora... Ela se ergueu do
assento, pressionou o botão para a próxima parada, esperou alguns segundos para
chegar ao ponto, e finalmente desceu.
O relógio digital no canteiro central mostrava 9 horas e 12 minutos. Até
as 9 e 22, ela caminhou até a entrada do parque, já ouvindo o barulho que
pequenos animais e aves faziam pelas árvores e trilhas. Caminhando mais um
pouco, sozinha, notando que não havia viva alma nos arredores, ela procurou por
um banco, e sentou-se, gemendo com a dor
nas costas, o sempre presente nervo ciático a reclamar não apenas pela
caminhada, mas pelo peso ganho nos últimos anos. A pequena bolsa aninhou-se sobre
suas coxas como um gato a ronronar no colo do dono. Ela recostou-se, ergueu os
braços e espreguiçou-se, fechando os olhos por um momento, sentindo o sol fraco
a se espalhar pelo seu rosto por entre galhos de uma árvore frondosa e alta
mais à frente. Alguns pássaros pareceram se assustar, apressando-se numa
revoada desordenada de repente. Olhando ao redor, os olhos cansados espremidos
para enxergar mais longe, ela notou o rapaz que se aproximava. Endireitou as
costas e levou uma mão à bolsa num reflexo naturalmente paulistano, entre
curiosa e tensa com a postura e o caminhar do rapaz. Ele caminhava como se seu
gingado fosse atributo a que qualquer observador devesse reverenciar. Ele
calçava sandálias de dedo, ela notou conforme o estranho se aproximava,
daquelas de borracha, sabe-se lá se soltavam as tiras ou não nos dias de hoje.
A calça jeans parecia surrada e pedia desesperadamente por um cinto ou algo que
lhe segurasse ao redor da cintura do rapaz. A camiseta que anunciava que ele
era o condutor do Bonde do Tigrão já vira dias melhores, e a cada par de passos
o sujeito tragava um cigarro torto. Ele se aproximou, uma mão no bolso de trás
da calça. Ela piscou os olhos uma, duas vezes, e esperou a abordagem que
certamente aconteceria, rezando para não haver confusão naquele 1º de Janeiro.
Ao invés de falar, o rapaz sentou-se, cruzando uma perna por cima da outra,
esticando os braços pelo encosto do banco comprido, e olhou para a senhora.
- Madrugou, madame? - Sem
rodeios. O rapaz pôs-se a encara-la fixamente, para em seguida percorrer os
olhos por toda sua figura, notando roupas, sapatos, acessórios, e parando por
alguns segundos nos brincos de pérola que ela usava.
- Não senhor, não madruguei. E não sou madame, você se enganou. – Pensou
em dizer com o bom e velho palavreado quem poderia ser a tal madame a que ele
se referia, mas continuou em silêncio, deixando sua postura aparentar uma segurança
que ela já havia possuído tempos atrás. Não naquele dia, nem naquele
tempo. Olhou para a copa de uma árvore,
sem deixar de notar com o canto do olho que o rapaz não deixava de encara-la
por um instante sequer.
- Tá certo então, Dona. Tem aí uma grana pra me emprestar?
Quase engasgada, ela franziu o cenho, voltando a fita-lo, como se visse
um bode de quatro cabeças bem à sua frente.
– Como? – O coração acelerou o ritmo, e ela puxou o ar fresco do parque
pelas narinas, soltando-o em seguida. O cheiro era de cigarro, algo como queijo
estragado e problemas.
- Tô perguntando se a Dona aí não tem uma grana pra me emprestar.
- Não. Eu não tenho. – O tom saiu seco, ríspido. A postura mudou, a
guarda havia se erguido por completo, e dali em diante, nada era previsível.
Talvez um assalto, talvez outra coisa que ela se recusava a sequer imaginar. “Quem
mandou? Sair de casa pra que?? Por que esse
maldito parque, mulher, por que?”
- Tem pobrema não tia. Pode
conferir aí na bolsa que eu tenho tempo, eu espero. – Ele falava devagar, e
parecia estar se divertindo.
- Vou te dizer uma coisa, menino – Ela respirou fundo, e soltou o ar
novamente, encarando-o – Primeiro, eu não sou sua tia, não. Segundo, eu já percebi
que você reparou bem em mim. Deve ter visto que dinheiro é uma coisa que eu não
tenho. E se tivesse, seria muito imbecil de trazer a um parque, num dia como
hoje e num horário desses.
O rapaz pareceu surpreso. – A Dona aí fala pra cacete hein?! Negócio é o
seguinte: a Dona me dá o que tiver de valor aí, e eu te deixo em paz, sacou? –
Falando, ele pegou-a pelo cotovelo e forçou a senhora a se levantar, quase
arrastando-a consigo para um local mais isolado, perto de um conjunto mais
denso de árvores, aonde o sol quase não penetrava. Ela caminhou a passos
rápidos, pensando igualmente rápido. A alguns passos de um eucalipto muito
alto, ela parou, fincou os pés no chão, e quase fez o rapaz tropeçar numa raiz,
largando seu braço. – Se gritar, já sabe! – Ele puxou um revólver de cano
comprido do cós da calça, apontando-o para o rosto da senhora, olhando nervosa
e rapidamente em volta, para voltar a encara-la. Não parecia que o sujeito
estava sob efeito de drogas, embora o hálito rescendesse levemente a álcool.
- Eu não vou gritar, idiota! – Quando ela percebeu, já tinha falado, e
provocado uma reação inesperada do rapaz, que baixou a arma por um momento,
pondo a mão na cintura e coçando o queixo. – A Dona madame aí é casca grossa,
hein? Por acaso eu xinguei a senhora? – Com os olhos arregalados, ele voltou a
apontar a arma. – Esvazia a bolsa no chão Ma-da-me!
– Ele fez questão de falar bem baixo, e enfatizou a última palavra, que
percebeu que ela não gostava. – Vai porra! Agora!
Ela apenas piscou os olhos, demonstrando uma calma que não sentia nem de
longe, e abriu o pequeno objeto, virando-o sobre o chão de terra. – Pronto!
Satisfeito, moleque?
Ele pareceu se assustar a princípio com a reação da senhora. Depois
pareceu ficar com raiva, e então começou a rir, observando o conteúdo da pequena
bolsa espalhado pelo chão: um cartão de transporte, uma pequena escova de
cabelos com o cabo quebrado, um lencinho de tecido fino, uma nota de 10, alguns
centavos, 3 balas de hortelã, daquelas baratinhas, carteira de identidade, um
cartão de visitas do marido, um frasco com álcool gel, e alguns guardanapos de
papel dobrados juntinhos num pequeno volume.
- Olha Dona, sabe o que é que eu faço com “suas tranqueira”? – Ele tirou um dos chinelos de dedo, pegou o
lencinho com o dedão e o dedo médio do pé e jogou para cima, com uma agilidade
surpreendente, pegando-o com a mão que estava livre. Tirou uma faca do bolso de
trás da calça e retalhou o lenço facilmente, enquanto ela apenas observava com
raiva nos olhos estreitados, os braços cruzados sobre os seios, batendo com a
ponta de um dos pés no chão. – Quem manda ser dura? – E o rapaz começou a rir
abertamente, mostrando a falta de pelo menos dois dentes no canto superior da
boca.
- Meu Deus... – Ela fez que não com a cabeça.
- E agora me passa aí “esses
brinco”, que tá com jeito de ser joia.
- HÁ! Como se você fosse saber a diferença! E não passo nada não senhor!
Vá trabalhar vagabundo! Maldito indulto! Deus castiga sabia? Sua mãe não te deu
educação, não, moleque? Ela não tem vergonha de você?? - O assaltante pareceu ficar paralisado, e ela
já não se encontrava mais parada, movia-se em direção a ele, com os olhos
ameaçadores, soltando chispas. O tom de voz da senhora era de revolta, e ela
parecia não conseguir parar de falar agora que havia começado. – O exemplo vem
de cima, né? – Ela apontou para cima e apanhou a bolsa do chão, aproximando-se
ainda mais do rapaz, que parecia grudado no chão, tentando calçar o chinelo que
havia tirado um minuto antes.
- Não tia, Deus é bom, e Jesus deu bom exemplo! – Agora o moço é que
tentava aparentar calma, sem saber se apontava o revólver ou se guardava o
objeto.
- Não estou falando de Deus seu mentecapto! – Ela alcançou-o, que,
surpreso, deu um passo para trás, mas não conseguiu fugir da mão que lhe
agarrou o pulso e torceu até que ele soltasse a arma. Pegando-a do chão
rapidamente, ela apontou para o assaltante que naquele momento aparentava ser
nada mais do que um menininho que havia sujado as fraldas. – O exemplo vem de
cima, lá de quem manda no país, seu merdinha! É assim que se fala, não é?
Quando você saiu da cadeia? Fugiu, foi? Ou te deixaram sair por bom
comportamento, por ser a bonequinha da turma?? – Ela apontou a arma para o
rosto do rapaz e esticou o dedo indicador. – Jogue a faca no chão! – Ele obedeceu
sem pestanejar. – E então?
- Como é que a madame sabe da cadeia?
- Eu vi a tatuagem nos seus dedos, cretino! E se agora eu atirar em
você, hein? Como é que fica? E madame deve ser aquela parideira da sua mãe, que
se estiver viva deve estar morrendo de vergonha e de desgosto nesse minuto!
Quantos anos você tem?
- Quatorze, senhora. – As costas do rapaz se arquearam para a frente,
formando uma corcunda.
- AH! Agora é senhora, né? Ficou educadinho de repente? Ou será que você
tem medo de berros? – Ela sacudiu o revólver, ainda apontado para o nariz do
rapaz, que ensaiou um soluço e começou a dar indícios de que iria chorar.
- Tá roubando por que, vagabundo? – Ela acariciou o cabo de metal da
faca de chef, imaginando como é que ele conseguira aquela peça...
- Porque eu to sem grana, senhora...
- E não pode trabalhar?
- Eu tava guardado, Dona.
- Por roubo?
- Sim senhora. – ele hesitou
antes de falar.
- O que mais? Fala logo que eu estou começando a perder a paciência!
- Matei meu padrasto, senhora. E tava vendendo droga pra um chegado meu.
- Mas é um verme... Sabe o que eu gostaria de fazer agora? O que fazem
os muçulmanos, que cortam as mãos dos ladrões como punição. Mas agora, eu só
vou fazer uma coisa... – Ela se aproximou mais do rapaz, que tinha suor a
escorrer-lhe pelas têmporas, e já exalava um cheiro horroroso de cebola debaixo
dos braços, a camiseta mostrando círculos escuros e malcheirosos na região. A
pouco menos do que um passo em frente ao moço, a senhora ergueu o braço bem
alto e soltou a faca, que caiu certeiramente sobre o peito do pé do rapaz, que
caiu de joelhos, gemendo alto e xingando. Ela então agarrou-o pelos cabelos
encaracolados e densos, mandando-o calar-se. Ela apontou a arma e mandou-o
ficar de pé após arrancar-lhe a faca do pé, não sem antes finca-la um pouco
mais fundo. Ele não conseguia apoiar o pé no chão sem gemer muito, com lágrimas
a escorrer-lhe pelo rosto.
- Talvez você consiga um emprego para inválidos quando sair da “cana”, não
sei se acertei algum nervo... Vagabundo de uma figa! Eu trabalho desde que era
adolescente! Tudo o que consegui na vida, e não é quase nada, foi com trabalho,
só para ter que entregar o que tenho e o que não tenho para um merdinha como
você? O dinheiro ou a vida? É assim? E tenho que ser tão patética a ponto de
não ter nada de valor para ser poupada, e ainda tenho que aguentar um
ladrãozinho mequetrefe como você rindo da minha situação? – Ela esbofeteou-lhe
os dois lados do rosto com as costas da mão, tirando-lhe sangue do canto dos lábios.
– E meus brincos ninguém leva, entendeu?? São especiais para mim, quem me deu
não pode me dar mais nada nessa vida, e SÃO MEUS! – Ela completou pisando-lhe
no pé machucado. – Ajoelha de novo seu moleque! – Ela vislumbrou mentalmente a
foto em seu criado-mudo, lembrando da forma como o corpo fora encontrado. Ela...
tão amada por tantos... Suspirou, o sangue fervendo-lhe no rosto.
O rapaz caiu de joelhos no chão, chorando copiosamente,
- Você matou quantos além do seu padrasto?
- 8, senhora. Matei 8 pessoas. Perdão! Perdão!
- Não sou eu quem tem que te perdoar. Você tem muito mais a pedir além
de perdão. Sabe rezar, imbecil?
- Sei, sim, senhora! Mais ou menos.
- Ave Maria? – Ele assentiu. – Pai Nosso? – Ele sacudiu a cabeça,
incerto. – Pode começar.
A senhora deu a volta por trás do rapaz ajoelhado, e esperou que ele
começasse, grudando-lhe a faca no pescoço. Ele terminou seu terceiro Pai Nosso,
rezou três Ave Marias e pausou. – Faltam cinco de cada. Você está arrependido?
O rapaz hesitou, com medo da pressão da faca no pescoço, e respondeu que
sim sem mover um músculo.
– Então termine, ainda hoje! – Ela olhou rapidamente em volta, não sabia
há quanto tempo estavam ali, mas provavelmente demoraria um pouco mais para que
os festeiros de ressaca aparecessem naquele ponto isolado do parque. Ela
agachou, cuidando para não afastar a faca do pescoço do assaltante, e alcançou
o lençinho esfarrapado, juntando os trapinhos em uma mão. As orações chegaram
ao fim, e o rapaz suspirou, como se estivesse aliviado.
– Muito bem. Sente-se melhor? Como é que você se sente tendo sua vida
ameaçada por alguém que não parece oferecer perigo?
- Eu estou arrependido senhora.
- Responda a minha pergunta. Você não está revoltado? Com medo?
Assustado? Você revidaria, daria o troco? Pode ser sincero comigo...
- Estou com medo sim, senhora. Não sei se eu dava o troco, se eu pudesse eu
só fugia.
- E voltaria a roubar e a matar?
O rapaz vacilou um pouco, e ela voltou a ficar de frente para ele.
Gentilmente, ela tomou-lhe a mão, depositando ali a faca, enquanto apontava o
revólver para o chão.
- E agora? Você não está tão em desvantagem...
Os olhos do rapaz pareceram se reacender por um instante, e ele fez
menção de se levantar.
- Quem foi que disse que podia? Eu já entendi. – Ela balançou a cabeça
negativamente – Você é um covarde, um ladrão, um assassino... E o exemplo vem
de cima mesmo... Você é menor, não responde pelos seus crimes à altura, não
recebe a punição certa... – Ela apontou o revolver direto para a boca do rapaz trêmulo
– Nem quando tem a chance, você se emenda... E assim construímos um país onde
vale tudo para estar por cima, ostentar... Talvez seja só a natureza humana,
não é? – Encarando-o nos olhos, ela apontou para a mão do rapaz, a que segurava
a faca. Ele parecia ouvir alguém falando em outra língua que não conseguia
entender. Ela quase teve pena. – Erga a mão, devagar... Isso... Encoste a faca
no seu pescoço. – O rapaz fazia como ela mandava, piscando muito e
nervosamente. – Mais perto... Mais... Pare aí... Assim. – Ela se deu por
satisfeita quando a faca tocou-lhe a artéria carótida, afastou-se alguns
centímetros e se posicionou praticamente ao lado do moço. – Quer me pedir
perdão? – Ele fez que não com a cabeça, parecendo confuso, e muito ofegante. –
Ótimo! – Com um movimento rápido e certeiro, a senhora deu um puxão no
antebraço do rapaz, e a faca afiada deslizou profundamente sobre a pele, cortando
a carne. O sangue jorrou profusamente, manchando a gola da camiseta, e
escorrendo por onde quer que encontrasse passagem. A senhora observou por
alguns segundos enquanto o assaltante tentava apertar o pescoço e estancar o
sangue, reparando meticulosamente no vestido branco, certificando-se de que não
havia algum respingo do sangue do rapaz. Ele jazia deitado a poucos centímetros
dos pequenos tênis de lona da senhora, a faca caída perto da mão ensanguentada
do rapaz, morto.
Respirando fundo, sentindo algo parecido com alívio, ela recolheu a
faca, enfiou a lâmina na terra e puxou-a de volta, tirando a maior parte do
sangue do rapaz da superfície de metal. Em seguida, pegou o frasco de álcool
gel do chão, e os guardanapos. Ela esfregou a lâmina no ferimento aberto no
pescoço do assaltante, e então, cuidadosamente, ela limpou o cabo da faca e,
segurando-a com um guardanapo, colocou-a na mão do rapaz. Fez a mesma limpeza
meticulosa no revólver, limpando toda a superfície, apagando qualquer possível
digital deixada por ela no objeto, e segurando-a entre dois dedos envoltos nos
farrapos do lencinho, colocou-a caprichosamente de volta no cós da calça do moço. Ela endireitou as costas e resolveu pegar um
galho de palmeira com folhas secas caído por perto e passar por sobre a terra,
apagando qualquer pegada dos seus tênis. Com muita calma, a senhora saiu daquele
cenário hediondo andando devagar, arrastando atrás de si o galho, como se
estivesse apenas distraída, ou até se divertindo, olhando para trás de quando
em vez, só para ter certeza de que estava tudo em ordem pelo caminho... Havia
um sorrisinho quase imperceptível no canto do lábio pintado de um rosa
discreto...
Assim que chegou a um piso asfaltado, ela tratou de quebrar o galho em
vários pedaços, deixando –os jogados por alguns lugares onde passou... Pessoas
já caminhavam pelo parque, algumas com cara de ontem, com seus óculos de sol,
levando crianças em carrinhos de bebê, pedalando suas bicicletas... Era apenas
um 1º de Janeiro como outro qualquer. Um ano novo começava, mas pouca coisa
mudava. Bem, ao menos uma coisa havia, sim. Um malfeitor, um assassino, um
bandido a menos para atormentar e matar pessoas de bem.
Ao caminhar para o ponto de ônibus, ela rezou silenciosamente, lembrando
da sua avó, morta por um assaltante no dia do seu aniversário de 16 anos. Ela
havia lhe dado seus preciosos brincos de pérola, companheiros inseparáveis de
uma vida, praticamente. Caminhou quase como em uma procissão, sentindo algo
semelhante a um gosto de metal na boca... Seria este o gosto que tinha a
vingança?
Ao chegar em casa, a senhora beijou o marido, tomou uma chuveirada,
bebeu o café que ele lhe preparara, e resolveu ir dormir. Naquele dia, ela se
achou no direito, sentia-se cansada como nunca estivera. Ela tinha quase
certeza de que merecia... Sorriu
serenamente antes de adormecer, desejando-se um Feliz Ano Novo, um ano
diferente, e de fazer a diferença...
A senhora despertou lentamente. Custou para que finalmente conseguisse
abrir os olhos. Ela olhou em volta, esperando encontrar o marido cochilando,
como de costume, ao seu lado. Ficou confusa por um instante, piscando algumas
vezes. Não tinha certeza de onde estava... A superfície onde estava era dura,
nada como seu colchão velho, macio e aconchegante. A claridade era muito grande
também... Virando a cabeça, ela notou a terra batida, árvores, grama. Num susto,
reconheceu os pés de metal de um banco, e tocou o chão ao seu lado, tentando
firmar o corpo e se erguer. Havia um gosto metálico em sua boca... O chão
parecia úmido.
Ela conseguiu sentar-se, e endireitou as costas, como sempre fazia. Seu
vestido estava sujo de vermelho... Sangue! Seu sangue! Como assim? Outro susto.
Tocou o próprio pescoço. E então, levou as mãos à cabeça... às bochechas, aos
lábios... suas orelhas! Não podia ser!
Fechou novamente os olhos, e refez seus passos mentalmente, tentando
entender o que acontecia. Aquele rapazinho queria assalta-la. Ele a havia
levado para aquela parte isolada do parque. Ela não tinha algo de valor para
lhe entregar... O menino tinha uma arma, uma faca...Era tão novinho! Ele queria
seus brincos! Os brincos de pérola dados a ela pela sua avó, sim... Ela não os
entregaria, eram muito importantes para ela...Mas ela havia desarmado o meni...
“NÃO!” Ergueu-se facilmente, rápida, ágil como há muito não era. Ela se viu
deitada, sangue por todo o peito e estômago, uma bagunça danada, uma cena feia
aterrorizante. Seu pescoço estava dilacerado, os lóbulos de suas orelhas haviam
sido decepados... “Meus brincos!” Deu-se conta lentamente ... Sentiu um grande
vazio, e em seguida raiva, frustração, tristeza... “Ah, não... Não assim... Meu marido! Ahhh...
Meus filhos... Eu só queria dar um passeio de ano novo. Aquele menino, Pai do
Céu... Minha vida... Ele levou minha vida! Por que é que eu DEVERIA ter dado o
que ele queria, se era ELE que estava errado?? Por que eu não tinha o direito
de ter uma lembrança deixada por minha avó tão querida, Senhor? Por que é que
ele teve que me tirar a vida, se já iria me levar algo cujo valor maior era o
sentimental? Nem eram grandes, os meus brinquinhos... Não valem tanto... Por
que eles estão começando tão jovens...? Por que?”
Ela ficou ali parada a observar, lembrando de tudo. Passado o susto, o
trauma, ficava fácil até de entender. Havia sido como um sonho. E ela acordara
para ver o pesadelo físico deixado por aquele garoto que destruíra uma vida,
uma família. Ela sonhara ter feito algo a respeito. Quase sorriu, desolada,
desconsolada, refletindo sobre aquela falsa realidade que criara em um sonho,
ou seja lá o que fosse, tentando apagar o que acontecera, o trauma de ver uma
arma disparada em sua direção.. Lembrou-se da dor, de como o projétil queimara-lhe
o peito como ferro em brasa, levando a mão até o local sem perceber. Sentiu
novamente o metal cortando-lhe os lóbulos das orelhas, lembrava-se
perfeitamente, ainda respirava, mas o rapazinho tinha pressa, e queria seus
brincos a qualquer custo. A alguns passos de onde estava sua mão esquerda, já muito
pálida, ela viu os pedaços de carne cortada deixados para trás como quinquilharias
após um saque violento... Esboçou um breve
sorriso ao notar sua aliança de casamento intacta em seu dedo anelar. “Ele deve
ter se distraído, ou estava mesmo com muita pressa...”
Ela esperou por algum tempo, pensativa... Como é que ela poderia ter
levado a melhor contra um garoto tão jovem, armado, cheio de maldade e ganância
no coração, ávido por algo de valor material que julgara serem os brincos. Aquela
criança poderia fazer isso com outras pessoas! Aonde estavam as autoridades,
que não trancafiavam um ser já tão violento assim, e tão, mas tão jovem? O que
seria quando fosse adulto? A quantos mataria, e sabe-se lá por que? Percorreu
com os olhos aquele retrato pintado com sangue e violência, um quadro de um ano
novo infeliz para quem lhe amava. “Como eles vão receber a notícia? Nem meu
marido sabe onde estou... Ah, rezem por mim... Eu ainda tinha tanto pra fazer!”
Um homem uniformizado foi quem encontrou a senhora, deitada, horas após
sua morte. Ela tranquilizou-se um pouco quando ele fez uma oração, pedindo a
Deus que lhe desse paz, e em seguida chamou a polícia. A senhora observava,
querendo pedir a eles que encontrassem seu marido, seus filhos, e fossem
delicados ao dar a notícia. Por mais estranho que parecesse, mesmo tendo a
certeza de que não haveria volta, em algum canto do que ela era a partir dali, espírito,
uma alma, ela não tinha certeza, havia uma esperança, por pequenina que fosse,
de que ela acordaria novamente, viraria para o lado, e sorriria ao ver seu
marido a roncar, sonoramente, ao seu lado, como sempre fizera nos últimos 33
anos. Aos poucos a notícia se espalhou pelo parque, pessoas vieram rezar pela
alma da senhora, que observava calmamente a tudo em um canto.
Ela deixou o parque quando finalmente pegaram sua identidade. Ela sentiu
uma certa ternura quando ouviu o policial, emocionado, pronunciar seu nome...
Ele pegou o cartão de visitas encontrado perto da bolsa, e o telefonema para
seu marido foi feito: “O senhor é parente de Dona Esperança?” Ela se afastou,
não querendo ouvir mais... Então observou enquanto aquela massa pálida de
lábios meio rosados, meio azulados, que ainda naquela manhã era seu corpo, foi
erguida cuidadosamente, colocada sobre uma maca, coberta com um lençol branquinho,
assim como ela gostava, carregada para dentro de um veículo, e transportada,
tudo como mandava a lei... Ao menos uma lei, aquela lei, a ajudaria a chegar a
um lugar, quem sabe um lar, sem muitos problemas, a salvo de quem pudesse
querer lhe fazer algum mal.
Assim começou e terminou o ano novo da senhora, Esperança. Apenas mais
uma vítima, apenas mais uma entre tantas, mas sempre “A UMA” para alguém...
Quantas Esperanças mais ainda esperam sem saber que seu ano está para terminar
assim, e por quanto tempo isso ainda pode acontecer, assim, do nada, por nada?
E como essa senhora perguntou, por que?
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